Até as vovozinhas são corrompidas pela novela da globo:
Na novela Passione, duas octogenárias têm a força.
E o comportamento delas está longe de ser politicamente correto
Marcelo Marthe
Dias atrás, a atriz Daisy Lúcidi foi abordada por um anônimo em um café no centro do Rio de Janeiro. "Mas como a senhora é ruim, hein, dona Valentina?", disparou o sujeito. Desde que Daisy, de 80 anos, assumiu tal papel na novela Passione, a confusão entre intérprete e personagem a persegue nas ruas – como sempre ocorre quando se corporifica com competência uma vilã da laia de Valentina. Por baixo da casca de avó boazinha há uma criatura horrorosa, que obriga a neta de 15 anos, Kelly (a novata Carol Macedo), a se prostituir. A vovó maldosa remete, com realismo, ao noticiário sobre exploração sexual de crianças e adolescentes. E é também ilustrativa da visão peculiar que o atual folhetim das 8 da Globo tem a oferecer sobre a propalada "terceira idade".
Em uma trama que chama atenção pelo fato já por si incomum de trazer quatro octogenários em papéis de realce, ela não é a única velhinha safada. Encontra sua contraparte, digamos, "do bem" na ricaça Brígida, representada por Cleyde Yáconis, de 86 anos. A matriarca – sogra de Bete (Fernanda Montenegro) e vinte anos mais velha do que esta, embora as duas atrizes tenham só seis anos de diferença – é esnobe e preconceituosa. Além disso, dá suas escapadas com o chofer da família, Diógenes (Elias Gleiser, de 76) tão logo o marido, Antero (Leonardo Villar, de 86), cai no cochilo. A misteriosa atividade a que patroa e chofer se dedicam é provavelmente inocente, mas as falas de duplo sentido carregam as cenas de libido. "Quero que o público imagine que os dois velhos podem, sim, estar fazendo sexo", diz o noveleiro Silvio de Abreu.
Brígida e Valentina destoam do padrão de velhice decantado nas novelas. Normalmente, atores na faixa etária de Daisy Lúcidi e Cleyde Yáconis ou são relegados a papéis de vovôs e vovós simpáticos ou mostrados como coitadinhos. O ápice dessa tendência foi o casal nonagenário (formado por Oswaldo Louzada e Carmem Silva, ambos mortos em 2008) que padecia nas mãos de uma neta sádica em Mulheres Apaixonadas (2003), de Manoel Carlos. Mas, como lembra o especialista Mauro Alencar, é possível pescar, na história do gênero, exemplos eventuais de velhinhos transviados. "Em tramas dos anos 70 como Os Ossos do Barão, de Jorge Andrade, ou O Casarão, de Lauro César Muniz, havia idosos com vida sexual bem apimentada", diz o estudioso. O próprio Silvio de Abreu tem tradição nessa matéria: em seu sucesso Sassaricando (1987), Paulo Autran (1922-2007) fazia um senhor que não resistia a um rabo de saia. Na novela atual, o autor avança ainda mais, tanto na idade dos atores quanto na voltagem de seus personagens.
Embora Passione venha ostentando uma audiência capenga para o horário das 8 desde sua estreia, há um mês, a Globo já detectou que a personagem de Cleyde Yáconis cativa o público. Veterana do teatro e dos folhetins, a atriz tempera a incorreção política com certa fleuma de dama quatrocentona (como são conhecidos os clãs tradicionais paulistanos). Brígida não poupa nem os idosos de discriminação: chama o próprio marido de "caduco". Apesar disso, trata-se de um registro ameno. Já a personagem de Daisy Lúcidi revolta os espectadores (e se soma ao arsenal de "temas-denúncia" explorados por Abreu, que inclui ainda o aborto e as drogas). Ex-deputada estadual no Rio, com quatro mandatos, e radialista há mais de sessenta anos (foi atriz de radionovelas e até hoje comanda um programa assistencialista), Daisy está debutando como vilã. "O maior desafio foi me despir da vaidade. Tive de engordar 5 quilos e venho me sujeitando aos vestidos sem manga e à maquiagem borrada para fazer aquela desqualificada", diz. Desqualificada é pouco. Para convencer Kelly a se prostituir, Valentina apela para a chantagem emocional: finge acessos de tosse e se faz de idosa vitimizada. No passado, ela fazia o mesmo com a neta mais velha, a golpista Clara. Vivida por Mariana Ximenes, essa última é a vilã "oficial" de Passione. Até agora, porém, a vovozinha vem lhe passando a perna.
Fonte: Revista Veja Edição 2170 / 13 de junho de 2010. Veja no link abaixo:Televisão As velhinhas de Passione - Edição 2170 - Revista VEJA
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